quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009







Era uma vez um pintor que tinha um aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor encarnada, quando a certa altura começou a tornar-se negro a partir-digamos-de dentro. Era um ó negro por detrás da sua cor vermelha e que, insidioso, se desenvolvia por fora, alastrando-se e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.

O problema do artista era este: obrigado a interromper o quadro que pintava e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia agora o que fazer da cor preta que o peixe lhe ensinava. Assim, os elementos do problema constituíam-se na própria observação dos factos e punham-se por uma ordem a saber:

1º- peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe e o quadro, através do pintor;

2º- peixe, cor preta, pintor, em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar acerca das razões porque o peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá dentro do aquário, o peixe, realizando o seu número de prestidigitação, pretendia fazer notar que existe apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo.




Herberto Helder



sábado, 24 de janeiro de 2009









O juízo original



Não leias. Olha as figuras brancas desenhadas pelos intervalos separando as palavras de várias linhas dos livros e inspira-te nelas.

Dá aos outros a tua mão a guardar.

Não te deites sobre as muralhas.

Retoma a armadura que abandonaste na idade da razão.

Põe a ordem no seu lugar, desarruma as pedras da estrada.

Se sangras e és homem, apaga a última palavra na ardósia.

Forma os teus olhos fechando-os.

Dá aos sonhos que esqueceste o valor daquilo que não conheces.

Conheci três lampistas, cinco guarda-barreiras mulheres, um guarda-barreira homem: e tu?

Não prepares as palavras que gritas.

Habita as casas abandonadas. Não foram habitadas senão por ti.

Faz um leito de afagos aos teus afagos.

Se eles batem à porta, escreve as tuas últimas vontades com a chave.

Rouba o sentido ao som, existem tambores encobertos mesmo nos vestidos claros.

Canta a grande piedade dos monstros. Evoca todas as mulheres de pé sobre o cavalo de Tróia.

Não bebas água.

Como a letra l e a letra m, pelo meio encontrarás a asa e a serpente.

Fala consoante a loucura que te seduziu.

Veste-te com cores cintilantes, não é hábito.

O que encontras só te pertence enquanto a tua mão está estendida.

Mente ao morder o arminho dos teus juízes.

Enforca-te, bravo Crillon, eles te tirarão da forca com o seu Isso depende.

Ata as pernas infiéis.

Deixa a madrugada aumentar a ferrugem dos teus sonhos.

Aprende a esperar, de pés para a frente. É assim que brevemente sairás, bem coberto.

Acende as perspectivas da fadiga.


Vende com que comer, compra com que morrer de fome.

Faz-lhes a surpresa de não confundir o futuro do verbo ter com o passado do verbo ser.

Sê o vidraceiro da pedra engastada no vidro novo.

A quem peça para ver o interior da tua mão, mostra os planetas não descobertos do céu.

Diz à luz, tu calcularás as dimensões encantadoras do insecto-folha.

Para descobrir a nudez daquela que amas, olha as suas mãos. O seu rosto baixou.

Separa o giz do carvão, as papoulas do sangue.

Dá-me o prazer de entrar e sair nas pontas dos pés.

Ponto e vírgula: vês, mesmo na pontuação, como eles são surpreendentes.

Deita-te, levanta-te e agora deita-te.

Até à nova ordem, até à nova ordem monástica, isto é até que as mulheres mais jovens e belas adoptem o decote em cruz: os dois ramos horizontais descobrindo os seios, o pé da cruz nua no baixo-ventre, ligeiramente avermelhado.

Daquilo que tem a cabeça sobre os ombros, abstêm-te.

Regula a tua marcha pela das tempestades.

Nunca mates uma ave da noite.

Olha a flor da campainha: ela não permite ouvir.

Falha a finalidade aparente, quando tiveres que atravessar o teu coração com a flecha.

Opera milagres para os negares.

Tem a idade deste velho corvo que diz: Vinte anos.

Tem cuidado com os carroceiros do bom gosto.

Desenha na poeira os jogos desinteressados do teu tédio.

Não escolhas o tempo de recomeçar.

Sustenta que a tua cabeça, contrariamente às castanhas-da-índia é em absoluto sem peso, uma vez que ainda não caiu.

Doura a pílula com a centelha sem isso negra pela bigorna.

Faz para ti sem franzir as sobrancelhas uma ideia possível das andorinhas.

Escreve o imperecível na areia.

Corrige os teus pais.

Não guardes em ti aquilo que não fira o bom senso.

Imagina que esta mulher está contida em três palavras e que esta colina é um abismo.

Lacra as verdadeiras cartas de amor que escreves com uma hóstia profanada.

Não deixes de dizer ao revólver: Muito lisonjeado mas parece-me tê-lo já encontrado em qualquer lado.

As borboletas do exterior não procuram mais do que alcançar as borboletas do interior; não substituas em ti, se vier a ser quebrado, um único espelho do revérbero.

Amaldiçoa o que é puro, a pureza está amaldiçoada em ti.

Observa a luz nos espelhos dos cegos.

Queres ter ao mesmo tempo o mais pequeno e o mais inquietante livro do mundo? Pede para relerem os selos das tuas cartas de amor e chora; não obstante tudo, tens razão para isso.

Nunca esperes por ti.

Contempla bem estas duas casas: numa estás morto, na outra estás morto.

Pensa em mim que te falo, põe-te no meu lugar para responderes.

Receia passar demasiadamente perto das tapeçarias quando estás só e ouças chamar por ti.

Torce o teu corpo com as tuas próprias mãos por cima dos outros corpos: aceita corajosamente este princípio de higiene.

Come apenas aves em folhas: a árvore animal pode sofrer de Outono.

A tua liberdade com a qual me fazes chorar a rir é a tua liberdade.

Faz fugir o nevoeiro diante de ti mesmo.

Considerando que a natureza mortal das coisas não te confere um poder excepcional de duração, pendura-te pela raiz.

Deixa ao travesseiro idiota o cuidado de te acordar.

Corta as árvores se quiseres, quebra também as pedras mas tem cuidado, tem cuidado com a luz lívida da utilidade.

Só te fitas com um olho, fecha o outro.

Não anules os raios vermelhos do Sol.

Segues pela terceira rua à direita, depois pela primeira à esquerda, chegas a uma praça, voltas junto do café que conheces, segues a primeira rua à esquerda, depois a terceira rua à direita, lanças a tua estátua por terra e ficas.

Sem saber o que irás fazer com ele, apanha o leque que esta mulher deixou cair.

Bate à porta, grita: Entre, e não entres.

Nada tens para fazer antes de morrer.






André Breton e Paul Éluard





quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

You wooden believe it




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Vizela, Janeiro 2009






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Vizela, Janeiro 2009






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S. Bento, Janeiro 2009





segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

A rapariga de Providence








eu teimo em ser humano por um dia
para que possas ver-me tal qual sou:
um grão, de fina areia, que se move
no dourado rumor da tua pele,
o breve estremecer que te percorre,
a preguiçosa vida dos sentidos;
e depois, teu igual, talvez te vença
ou me deixe vencer, e te pertença
com a vaidade que me vem de ter
o sábio coração de um aranhiço.




António Franco Alexandre











domingo, 28 de dezembro de 2008








Meu corpo é esta árvore,
uma montanha, o rio.
Ninguém o sabe, ninguém
a não ser eu, que o esqueço.


José Corredor-Matheos