domingo, 23 de março de 2008

Três poemas de Alexandre O'Neill



Fala


Fala a sério e fala no gozo
Fá-la pela calada e fala claro
Fala deveras saboroso
Fala barato e fala caro
Fala ao ouvido fala ao coração
Falinhas mansas ou palavrão
Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe
Fala francês fala béu-béu
Fala fininho e fala grosso
Desentulha a garganta levanta o pescoço
Fala como se falar fosse andar
Fala com elegância - muito e devagar.




*



Auto-retrato


O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sobre a ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...




*



Que queriam fazer de mim?


Uma palavra ,um gemido obsceno,
Uma noite, sem nenhuma saída,
Um coração que mal pudesse
Defender-se da morte,
Uma vírgula trémula de medo
Num requerimento azul, azul,
Uma noite passada num bordel
Parecido com a vida, resumindo
Brutalmente a vida!

A chave dos sonhos, o segredo
Da felicidade, as mil e uma
Noites de solidão e medo,
A batata cozida do dia a dia,
O muscular fim - de - semana,
As sardinhas dormindo,
Decapitadas, no azeite,
O amor feito e desfeito
Como uma cama
E ao fundo - o mar ...

Mas defendi-me e agora escrevo
Furiosamente, agora escrevo
Para alguém...

Lembras-te, meu amor, dos passeios que demos
Pela cidade? Dos dias que passámos
Nos braços da cidade?
Coleccionámos gente, rostos simples, frases
De nenhum valor para além do mistério
Também simples do nosso amor.
Inventámos destinos, cruzámos vidas
Feitas de compacta vontade,
De dura necessidade, rostos frios
Possuídos por uma ausência atroz,
Corpos extenuados mas sem nenhum sono para dormir,
Olhos já sem angústia, sem esperança sem qualquer
Pobre resto de vida!
Seguimos a alegria das crianças, agressiva
Como o carvão riscando uma parede,
Aprendemos a rir (oh que vergonha!)
Com a gente ordinária e calados
Descemos até ao rio - e ali ficámos
A ver!




2 comentários:

Anónimo disse...

vou adormecer a pensar nestas palavras
e nos amantes de Barcelona

será que têm memórias que lhes aquecem os pés, esses de BCN?
:)*

Natália Nunes disse...

jura que teve um blog chamado "corpo estranho"?
ah, e eu quase pensei ser inédita haha.


muito bacana trombar com esses mimetismos criativos acidentais...