segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Homens que são como lugares mal situados







Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
porque tinha uma mulher no pensamento
sei que os lavava como se os contasse.

Sei que os enxugava com a luz da mulher
com os seus olhos muito claros voltados para o centro
do amor, na operação poderosa
do amor.

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados.

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
o cabelo no seu sangue.

na água corrente.

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
e a mulher cantava para o homem respirar.




Daniel Faria
Homens que são como lugares mal situados



3 comentários:

V. disse...

... À espera de um sistema solar
Onde seja possível uma sombra maior
... :

Conheci
um homem que possuía uma cabeça de vidro. Víamos
- pelo lado menos sombrio do pensamento - todo o sistema
planetário. Víamos o tremelicar da luz nas veias e o lodo das
emoções na ponta dos dedos. O latejar do tempo na humidade
dos lábios. E a insónia, com seus anéis de luas
quebradas e espermas ressequidos. As estrelas mortas das
cidades imaginadas. Os ossos (tristes) das
palavras. A noite cerca a mão inteligente do homem que possui
uma cabeça transparente. Em redor dele
chove. Podemos adivinhar uma chuva
espessa, negra, plúmbea. Depois, o homem abre a mão, uma laranja
surge, esvoaça. As cidades (como em todos os livros que li)
ardem. Incêndios que destroem o último coração do sonho. Mas
aquele que se veste com a pele porosa da sua própria
escrita olha, absorto, a laranja. A queda da laranja
provocará o poema? A laranja voadora é, ou não é, uma
laranja imaginada por um louco? E um louco, saberá o
que é uma laranja? E se a laranja cair? E o poema?
E o poema com uma laranja a cair? E o poema em
forma de laranja? E se eu comer a laranja, estarei a
devorar o poema? A ficar louco? (...) E a palavra
laranja existirá sem a laranja? E a laranja voará sem
a palavra laranja? E se a laranja se iluminar a
partir do seu centro, do seu gomo mais secreto, e alguém
a (esquecer) no meio da noite - servirá (o brilho) da
laranja para iluminar as cidades há muito mortas? E se
a laranja se deslocar no espaço - mais depressa que o
pensamento, e muito mais devagar que a laranja escrita - criará
uma ordem ou um caos? O homem que possui uma
cabeça de vidro habita o lado de fora das muralhas da
cidade. Foi escorraçado. (E) na desolação das terras, noite
dentro, vigia os seus próprios sonhos e pesadelos. Os seus
próprios gestos - e um rosto suspenso na
solidão. Onde mora o homem que ousou escrever com a unha na sua
alma, no seu sexo, no seu coração? E se escreveu laranja
na alma, a alma ficará saborosa? E se escreveu
laranja no coração, a paixão impedi-lo-á de morrer? E
se escreveu laranja no sexo, o desejo
aumentará? Onde está a vida do homem que escreve, a vida da
laranja, a vida do poema - a Vida, sem mais nada - estará
aqui? Fora das muralhas da cidade? No interior do meu
corpo? Ou muito longe de mim - onde sei que possuo uma
outra razão... E me suicido na tentativa de me
transformar em poema e poder, enfim, circular
livremente.


Al Berto

[ Imagino que este senhor tenha sido um desses homens que são como lugares mal situados. ]

eyeshut disse...

há lugares mal situados onde existem homens raros...

Anónimo disse...

Como diz Vasco Gato,por vezes sinto-me uma mulher dentro de mim,fora do sitio...

beijinho