quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Véspera da Água






Tudo lhe doía
de tanto que lhes queria:

a terra
e o seu muro de tristeza,

um rumor adolescente,
não de vespas
mas de tílias,

a respiração do trigo,

o fogo reunido na cintura,

um beijo aberto na sombra,

tudo lhe doía:

a frágil e doce e mansa
masculina água dos olhos,

o carmim entornado nos espelhos,

os lábios,
instrumentos da alegria,
de tanto que lhes queria:

os dulcíssimos melancólicos
magníficos animais amedrontados,

um verão difícil
em altos leitos de areia,

a haste delicada de um suspiro,
o comércio dos dedos em ruína,

a harpa inacabada
da ternura,

um pulso claramente pensativo,

lhe doía:

na véspera de ser homem,
na véspera de ser água,
o tempo ardido,

rouxinol estrangulado,

meu amor: amora branca,

o rio
inclinado
para as aves,

a nudez partilhada, os jogos matinais,
ou se preferem: nupciais,

o silêncio torrencial,
no intervalo das espadas

uma criança corre
corre na colina

atrás do vento,

de tanto que lhes queria,
tudo tudo lhe doía.




Eugénio de Andrade



5 comentários:

ana salomé disse...

poema de poesia que chega lá onde a ternura nem imagina possível.

belo belo é também este poema.

:)

boa noite

V. disse...

coisa mai linda... *

:)

papel químico disse...

que bonito. obrigada por pores aqui.

Anónimo disse...

ooouuuch**

Ana disse...

"de tanto que lhes queria
tudo tudo lhe doía."

acho que faço minhas as palavras da angela...

*