terça-feira, 6 de novembro de 2007
A meio da tarde não sei porquê quando mais cadeiras se arrastam
nos ladrilhos e há mais pessoas no pequeno café isolado na vizinhança do mar
e eu a bem dizer já não sei que fazer das minhas duas mãos
e dou graças a deus por serem não mais que duas porque senão
é que não saberia mesmo o que fazer das mais ou menos a meio da
tarde quando a dois passos já há um centro de sombra e
há a minha pena de que haja vento e haja muitos dias à sombra
talvez por me faltar já a segurança do sol pouco antes imóvel
pairando no alto sobre a cal calma das casas sobre as folhas
mais largas dos plátanos reúno os papéis dispersos na mesa pago os cafés
diversos que fui tomando e dirijo-me com um profundo encolher dos ombros
apressadamente para casa.
A penumbra interior da casa o facto de a essa hora não haver
ninguém em casa a convicção de que o sol já deve ter dado a volta
a uma sombra redonda
rodeará a mesa junto à janela onde costumo escrever
a incidência muito particular da luz a meio da tarde eis aí outros
tantos factores susceptíveis de explicar pelo menos em parte
ou pelo menos na medida em que uma coisa se pode explicar
que eu caminhe para casa e pense que me devo sentir então bem em casa.
Gosto de entrar e de mal entrar logo começar a lavar os dentes
e de os lavar como se ao lavá-los eu lavasse mais do que os dentes
ou fizesse outra coisa que não lavá-los pensando talvez numa coisa
qualquer que não existirá não só para além do espelho que tenho
na frente como nem sequer na vida que outrora também tinha quase toda
na frente e agora se perde quase toda nas minhas costas como coisa que nunca vi
ou não é visível no espelho ou pelo menos não vejo no espelho
porque a verdade é que nem mesmo vejo o espelho e só daria bem pelo
espelho no momento em que o tirassem e fosse tarde demais para eu dar bem
por ele.
As coisas em que penso não existirão muitas vezes talvez a não ser
no meu pensamento ou então o meu pensamento modifica-as dá-lhes
possivelmente uma forma diferente da que têm ou terão na realidade como por
exemplo aquela mulher que há tanto tempo amei que nem mesmo sei bem se a
amei e que a noite passada enquanto eu dormia e vivia essa vida intermédia
dos sonhos emergiu de repente sem mais nem menos como uma mulher irresistível para mim
para mais manietado pelo sono da superfície aquática do sonho
e sobressaiu entre as demais coisas porventura mais ou menos sonhadas
e deixou uma esteira indelével e nítida na minha memória como um
apelo cavo e prolongado mesmo depois de eu ter acordado esteira
só dispersa a meia manhã
quando já outras pessoas e outros apelos quase por completo ocupavam
o território movimentado e confuso como uma feira da minha vida
da única vida que vivo e não é mais que estas coisas que faço
ao longo do dia nos campos no café ou principalmente aqui em casa
onde agora lavo os dentes como se nunca antes tivesse lavado os dentes.
Lavo os dentes e descubro imensas coisas enquanto os lavo e decerto
lavaria muitas vezes os dentes ao dia se antecipadamente soubesse que
descobriria
tantas coisas como agora descubro e não são os dentes nem as gengivas
nem qualquer destas coisas das quais aliás falo só por falar
através de palavras que deito para trás das costas como a vida que vivi
e se perderão para mim exactamente como essa vida palavras que nem
mesmo conseguirei
ver no espelho onde aliás nada vejo a não ser as gengivas e os dentes
e a boca aberta de um homem que lava contente os dentes
ou pelo menos os lava como uma forma de estar à tarde sozinho em casa
e se sente bem sozinho e gosta moderadamente de estar em casa
pelo menos porque assim não está no café onde a essa hora
há mais pessoas e há o ruído de muitas cadeiras e onde se então estivesse.
O mais certo seria sentir o desejo de se levantar e ir para casa
talvez porque já não sabe o que há-de fazer das mãos
ou porque o sol deu a volta à casa e deixou na sombra e no silêncio
da tarde
a mesa redonda junto à janela onde costuma escrever
como se porventura escrever fosse mais alguma coisa do que escrever
ou porque pode lavar os dentes com a convicção estritamente suficiente
para lavar os dentes num gesto curto do braço curvo
em casa à tarde sozinho com uma tarde não sabe bem porquê
um pouco mais lá fora nos campos que ali dentro de casa
com a maior parte da vida já atrás das costas
com um certo número de palavras como a vida deitadas para trás
das costas
e deitar palavras para trás das costas fosse alguma coisa como semear
meter em andamento através do campo lavrado a mão na serapilheira
dependurada do ombro esquerdo tirar ritmadamente um punhado de
semente
e espalhar a semente ao vento nos sulcos antes abertos pela charrua
como se deitar palavras para trás das costas que é afinal o gesto de quem
escreve fosse pelo menos lavar os dentes.
Não queiram saber quem sou
ou se porventura alguém por curiosidade ou forma de passar o tempo
quiser alguma vez saber quem sou que veja como lavo os dentes
e que estou tanto nessa lavagem dos dentes como toda a pessoa que
lava os dentes sozinha em casa a uma certa hora da tarde
na casa em sombra
Ruy Belo
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4 comentários:
Fantástico!
Não conhecia este poema de Ruy Belo, ou aliás, não conheço bem a sua obra.
Senti: que estamos perante alguém que sabe o quão relativa é a nossa passagem pela vida, apesar de a supormos única.
foi a melhor coisa que me aconteceu nestes ultimos tempos- a leitura deste poema.
Olha, estava a ouvir isto quando vidrei neste texto:
http://br.youtube.com/watch?v=A3YwfF05C9w
Who is that upon the stairs
acting like he don't know where
and who is laying down all the cards
and giving me the wrong things to say
and like a wheel on the table
He's a Cain to my Abel: Oh... it's my shadow...
Não é que interesse, mas pronto... Saio daqui a pensar em palavras e sombras e dentes e solidões...
Grande texto.
Beijinho*
não conhecia este poema de Ruy Belo. bonito. com ele sinto sempre uma necessidade de o ler alto, ou em tom sussurrado. não parece o mesmo quando apenas se lê "para dentro", perde beleza, perde vida. o ideal seria mesmo gritá-lo, mas nem sempre dá;)
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