segunda-feira, 1 de outubro de 2007




1.

Acordei com as narinas a sangrar um perfume
como um santo quando acaba de morrer
e debrucei-me para dentro
para encontrar o golpe no sono.
Encontrei uma mulher sentada entre os pássaros
que quebrava vasilhas de barro.
Disse-lhe: bebe do meu sangue.
E ela rasgou-me as veias com cacos
e deu de beber aos pássaros.

2.

Acordei também com os pássaros
e estudei a posição em que os bordava
nos seus vestidos
e disse: para que lhes espetas a agulha no coração
e ela respondeu: para que aprendam a direcção do voo

3.

Ela pôs-me o dedal sobre os olhos
um vaso pequenino com que me ministrou o sono
apagou em mim os instintos da caça.
Estou ferido nas narinas e nos pulmões,
digo-lhe: sufoco.
Ela ordenou que os pássaros batessem as asas
e fez circular o ar.

4.

Acordei dentro do poço
do ar
e soube que podia respirar dentro da água
porque a mulher estava cercada de peixes.
Disse-lhe: porque quebras aquários contra os joelhos?
Ela mastigava e não me respondeu,
estendeu a mão e deu-me um vidro a provar.

5.

Trinquei o vidro e ouvi o coração da mulher estalar:
a mulher era uma ilha de todos os lados
na sua força de redemoinho parado.

6.

Ela sorveu-me o sangue, curou-me a boca,
espetou-me um anzol na língua e puxou-me
as palavras.
foi então que pensei que ia morrer
afogado.

7.

Acordei dentro desse pensamento como um homem salvo
com a boca cheia de búzios em forma de palavras.
soube que era possível respirar dentro das palavras
porque vi a mulher pôr as mãos sobre os ouvidos.
Ela estava no meu pensamento e tinha um pequeno tear.

8.

E eu disse à mulher: destece-me
até que alguma coisa me pense para dentro
como se alguém me chamasse
como se badalasse um sino ao redor
dentro de mim.
A mulher pôs-se à escuta: perdi o fio - disse-
dos teus novelos.

9.

Assemelhei-me a um xilofone de silêncio
a um estrondo muito forte que só se ouvia em silêncio.
Gritei: então canta!
Ela pegou na minha tristeza e começou a dobar.

10.

Debrucei-me sobre a meada estreita, o estreito poço
e disse: é agora que vou descer.
Acordei no meio da descida e pensei:
ah, quem dera a mulher lançasse a sua trança
a prumo.



Daniel Faria
Homens que são como lugares mal situados



6 comentários:

Cometa 2000 disse...

Daniel Faria foi uma perda demasiado grande.

Excelente post.

V. disse...

...

*

menina tóxica disse...

gostei tanto deste pedacinho dele que tive de voltar aqui e copiar isto para mim. :)

está lindíssimo.

Ana disse...

Que poema tão bonito, excelente escolha. É por estas e por outras que vou voltando :)

Rita disse...

Esta poema lembra-me, não sei porquê, "A Noite Passada" de Sérgio Godinho.

Adorei!

Anónimo disse...

[silêncio e um nó
muito grande
na garganta]