Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...
José Gomes Ferreira
7 comentários:
Ohhhhh! Vou passar a olhar para as nuvens de outra maneira... ;)
É, as vezes penso que sou nuvem, meio plúmbea, branquíssima pairando, carregada pelo corpo delicado do vento, em um dia de primavera.
Lindo texto!
A morte é sempre a morte, mesmo que a forma fosse outra, a dor que causa, não iria ser diferente.
A morte é sempre a morte!
E também, para quem morre, qual a importância da forma?
Maria João
o nosso poeta militante - da poesia.
é bom recordá-lo assim.
beijos,
ana
Que bonito... Já agora das nuvens, mas agora... :)
há um livro do João Aguiar (A encomendação da almas - muito divertido por sinal;)) em que isto acontece: "transformamo-nos (...) em nuvens".
A morte é sempre a morte, dolorosa e afins, mas eu gosto desta ideia de convocar os amigos mais intímos, de preferência com um convite personalizado para cada um. Assim não restariam dúvidas do meu amor por eles:)
Acho que a maior parte das vezes haveria alguem desesperado que nao se quereria separar de quem decidiu ser nuvem, com hora marcada. E se isso não acontecesse que estranha iria a nuvem...
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